Bicho Solto


Certa vez me disseram que eu era um 'bicho solto'.
Na hora, sem pensar muito, ri. Depois a imagem de um cavalo solto no campo não me saía da cabeça. Era exatamente essa a descrição do 'bicho solto': um cavalo, livre. Sol, água, campo como únicos companheiros. Sem destino. Sem cela. Crinas ao vento. Cheiro de mato. Livre.
Não precisou muito tempo para eu começar a viajar. Na ocasião em que foi dito, aquilo fazia sentido. Em partes.
Esqueceram que todo animal é domesticável.
Você primeiro oferece uma maçã, uma cenoura. Aquele bicho no começo arredio e desconfiado, que pegava o alimento e ia embora, começa a demorar mais, perto de você. Depois começa a pegar confiança, sabe que você não fará mal a ele. Até que você acaricia a sua crina, faz carinho entre os olhos. O cavalo deixa. Passa mais um tempo e ele começa a esperar aquele carinho, aquela maçã. Se torna rotina. Ele sabe que você vem. Ele sabe que é bom. Quando te vê, chega perto da cerca. Faz graça. Você acha bonitinho. Você estende a mão e ele vem.
Um dia você consegue entrar no cercado. Escova seu pêlo. Cela. Monta. Cavalga. Puro prazer. Passam tardes incríveis juntos. Correm pelos campos, entre as árvores, se refrescam com a água pura do rio e com o vento bagunçando os cabelos. No final da tarde, os dois cansados voltam às suas casas felizes.
Um belo dia você não aparece. O cavalo como de costume e rotina, espera. Ele sabe que você virá. Ele sabe que você trará uma maçã e passará as mãos por entre suas crinas. Sabe que voces montarão juntos por entre os campos. Mas chove. O cavalo mesmo assim, espera. E você não aparece. Outro dia nasce. Com ele a esperança de te ver. Aquele afago. Horas de espera e nada.
Daí você volta, com sua maçã. Com o mesmo tom de voz. Com as mesmas mãos quentes.
E você espera que ele esteja lá na cerca. Feliz. Fazendo graça. Mas você percebe que ele está um pouco mais arredio, desconfiado. Se aproxima devagar. Cheira sua mão primeiro. Não te deixa se aproximar muito. E você não entende.
O cavalo antes solto, despreocupado, livre, foi domesticado. Agora ele precisa de você. Precisa de afeto pois gostou de recebê-lo. Sente falta da sua presença. Sabe quando você não aparece. Entristece. Espera. Sofre.
Já dizia O Pequeno Príncipe, "tu és responsável por tudo que cativas".
As vezes preferia ser assim: solta, livre, selvagem, chucra. Mas sou apenas mais um animal facilmente domesticável. Se enganaram quando disseram com tanta certeza que eu era assim tão solta. Eu só precisava do carinho certo com a frequencia certa.

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